Economia do Compartilhamento x Cooperativismo de Plataforma

Por Bia Martins

Uber e Airbnb são grandes exemplos de como os valores da colaboração e do compartilhamento estão aos poucos prevalecendo na economia, certo? Não, errado, muito pelo contrário. As duas empresas, lançadas no modelo startup, representam na verdade a grande habilidade que o capitalismo tem de se reinventar e de conseguir incorporar a “simbologia” de algo novo e disruptivo para manter as coisas exatamente como são. Ou ainda piorá-las.

A palavra compartilhamento, por exemplo, nos remete à ideia de colaboração, de algo partilhado por pares. Portanto, algo mais justo, já que todos se beneficiam. Mas não é isso que acontece nos exemplos que temos da Economia de Compartilhamento.

Vejamos o caso do Uber. Os motoristas são autônomos, todas as despesas com carro e seguro são por sua conta, e não têm nenhum vínculo trabalhista com a empresa. Por outro lado, a empresa criadora do aplicativo fica com 20% a 25% do valor de todas as corridas. As regras são estabelecidas pelos administradores do aplicativo em nível mundial, que podem alterá-las como e quando quiser, já que não são regidos por legislação específica.

O que exatamente é compartilhado nesse caso? Basicamente, os dados de motoristas e usuários, e suas viagens. O aplicativo se utiliza da grande capacidade de conexão das redes para colocar em contato motoristas e passageiros, oferecendo alguma mediação, o que proporciona razoável segurança para ambas as partes. Motoristas e passageiros têm que fornecer dados e são constantemente avaliados por sistemas de ranqueamento e pontuação. Nada diferente do que os aplicativos de táxi já fazem, com a diferença de que na maioria dos casos os motoristas não são profissionais e as tarifas do Uber X são bem mais baratas. 

O Airbnb segue mais ou menos a mesma linha. É uma empresa que criou um sistema razoavelmente seguro para colocar em contato viajantes e pessoas que se dispõem a ceder sua residência, no todo ou em parte, para hospedagem. Fica com 3% de cada reserva e funciona na verdade como uma corretora de alugueis de temporada. Seu trunfo é funcionar como um grande banco de dados que facilita a conexão entre virtuais anfitriões, que cobrarão por seus espaços, e hóspedes, que pagarão pela estadia. A noção de compartilhamento, mais uma vez, tem a ver com disponibilização de informação estruturada e não com trocas vinculadas à partilha e à colaboração.

Mas então o que foi feito do grande potencial da rede para o desenvolvimento de uma economia baseada na colaboração? Felizmente, muita gente anda preocupada e ocupada com isso, não só criando aplicativos e sistemas baseados nas trocas colaborativas, mas também pesquisando e refletindo sobre como fazer para que essas iniciativas prosperem e se tornem, quem sabe, relevantes na economia num breve futuro.

Trebor Scholz, professor da universidade The New School em Nova Iorque, vem trabalhando com a noção de Cooperativismo de Plataforma para se contrapor ao que define como Economia Colaborativa Corporativa, que aqui chamamos de Economia do Compartilhamento. Ele chama a atenção para o fato de que Uber e Airbnb, embora faturem na casa dos bilhões de dólares, não têm estrutura física própria. São empresas de logística que usam o seu carro, seu apartamento, seu trabalho e, principalmente, seu tempo para extrair lucro. 

Ao analisar essa situação, Scholz provoca, afirmando que o maior triunfo do capital é a incapacidade de se imaginar uma vida diferente e que as pessoas estão treinadas para pensar em si mesmas como trabalhadores e não como proprietários coletivos. Daí propõe a apropriação das plataformas por iniciativas cooperativas, lembrando o quanto o cooperativismo é vivo em vários países no mundo. Por exemplo, só no Brasil, segundo relatório da Organização das Cooperativas Brasileiras, de 2015, são mais de 6.500 cooperativas no país, com cerca de 13 milhões de cooperados.

De acordo com a proposta do Cooperativismo de Plataforma, resumidamente, os projetos devem ser de propriedade comum, ter governança democrática, compromisso com os direitos dos trabalhadores e oferecer um padrão de dignidade. Na verdade, são projetos que herdam o ideário cooperativista e se aproveitam das redes para ampliar seu raio de alcance e aumentar sua capacidade de produção.

Exemplos de casos bem-sucedidos nessa linha não faltam. A La`Zooz é uma Plataforma Descentralizada de Transporte, que pertence à comunidade e se propõe a criar soluções inteligentes de transporte, entre elas corridas compartilhadas por uma tarifa justa. Outro exemplo é o site Loconomics, gerido por trabalhadores, sem intermediários, que faz o contato direto entre profissionais autônomos e possíveis clientes. Podemos citar ainda o alemão Fairmondo, que pretende ser uma versão distribuída e colaborativa do site de vendas eBay.

Em comum, essas iniciativas têm propriedade e gestão coletiva. Não são propriamente um negócio, nos moldes capitalistas, não há um investidor que aufere lucro por mediar serviços prestados por outros. Ao contrário, são as próprias pessoas, envolvidas em diferentes tipos de troca (transporte, serviços ou produtos), que são donos, gerenciam e se beneficiam do retorno financeiro do empreendimento. Um modelo no qual, este sim, faz sentido falar em compartilhamento, pois há a partilha de uma plataforma, na qual é criado um valor pelo engajamento das pessoas com interesses afins, e este valor reverte em prol de todos.  

Para apoiar iniciativas como essas e avançar no desenvolvimento de uma governança democrática da economia cooperativa digital baseada na propriedade comum, a universidade The New School lançou, em 2015, o Consórcio Cooperativismo de Plataforma. No mesmo ano, foi realizado a Plataform Cooperativism Conference, que reuniu acadêmicos e ativistas para discutir o tema. Você pode ver um pouco do que foi discutido aqui

Leia um bom resumo das ideias de Trebor Scholz, escrito por ele mesmo (em inglês).

Um artigo mais completo e bem fundamentado (em espanhol) pode ser baixado aqui

Neste primeiro artigo sobre Economia Colaborativa do site, comecei com uma crítica à Economia do Compartilhamento e uma breve apresentação do Cooperativismo de Plataforma. Nos próximos meses, publicarei textos sobre outros grupos e projetos pelo mundo afora que vêm tentando criar alternativas para o impasse que vivemos atualmente: uma crise econômica em nível mundial na qual, por um lado, os recursos naturais dão sinais de esgotamento e, por outro, a concentração de renda é cada vez maior, gerando ainda mais precariedade do trabalho. 

Ah, e conto com vc para me indicar outros projetos nessa linha!

Comentários

Embora não conheça pessoalmente, tenho um filho que fez uso de um "Banco de Horas" criado em Florianópolis (SC) para trocar horas entre profissionais dos mais variados tipos. Creio que seria mais um bom exemplo. Até onde sei tudo funciona via facebook já que não há um administrador auferindo lucros. Notei agora que há muitos "Bancos de Horas" em vários grupos no fb.

Olá João, Já ouvi falar em propostas como Banco de Horas. Aqui no Rio há algum tempo houve um projeto de Banco de Tempo. O assunto rende um bom post. Agradeço sua dica!

E comentário anterior falei em Banco de Horas de Florianópolis, Não é, me enganei. É Banco de Tempo e funciona no facebook, no endereço: https://www.facebook.com/groups/837082279745501/?fref=ts Sem fins lucrativos ele ajuda a promover o intercâmbio de horas profissionais das mais variadas.

Sim! Isso mesmo!

Achei interessante a ideia de aplicar os conceitos dos princípios e valores do cooperativismo moderno nas diversas plataformas. Acredito muito no cooperativismo. Nas plataformas, me parece algo novo... Sérgio Lutz - especialista em Gestão de Cooperativas - PUCRS.

Olá Sérgio, Sim, o cooperativismo oferece uma tecnologia de produção que é uma das alternativas mais consistentes ao sistema econômico vigente, baseado no lucro e na expropriação de valor. Já está no forno uma entrevista com Michel Bauwens (deve ser publicada na semana que vem) que enfatiza muito o cooperativismo na transição para uma economia baseada no commons. Um abraço, Bia Martins