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Mais um ataque da indústria cultural rentista

Por Bia Martins

Matéria publicada pelo CanalTech revela o mais novo ataque da indústria cultural rentista. Em resumo, dezenas de milhares de usuários de torrent no Brasil receberam notificações extrajudiciais com cobrança de R$ 3 mil como ressarcimento por terem baixado filmes protegidos por direito autoral, ao lado de ameaça de abertura de processo civel ou criminal caso não efetuassem o pagamento.

O caso tem vários problemas. Em primeiro lugar, cabe questionar: como conseguiram esses dados? A matéria informa que através de uma funcionalidade embutida nos filmes, Bunting Digital Forensics, é possível acompanhar todo upload ou compartilhamento de cópias não licenciadas, obter o endereço IP da máquina, identificar o provedor de acesso à Internet usado, e saber a hora e o dia exatos em que o compartilhamento ocorreu. Já temos aí a primeira violação à Lei Geral de Proteção de Dados (LGBD) recentemente aprovada no País, pois os dados pessoais estariam sendo coletados sem autorização ou mesmo conhecimento dos envolvidos.

Mas a coisa fica ainda mais complicada. De posse desses dados, os representantes da produtora Millenium Media, que detém os direitos autorais dos filmes em questão (Hellboy, Invasão ao Serviço Secreto e Rambo: Até o Fim), entrou com um pedido de quebra de sigilo contra a operadora Claro para obter informações pessoais dos clientes a fim identificá-los e notificá-los. O Tribunal de Justiça de São Paulo acatou o pedido e deu 48 horas para a operadora entregar os dados. A operadora, por sua vez, cumpriu a decisão sem questionar se isso iria contra a LGPD. E esses dados (nomes completos, endereços e CPFs) foram disponibilizados em planilhas simples no Google Drive acessíveis a qualquer um que tivesse acesso ao processo...

E ainda nem tocamos no cerne da questão: é crime baixar um filme pelo torrent? Na Alemanha sim, mas não no Brasil. Aqui o Código Penal prevê pena apenas para quem usar o recurso com finalidade de lucro. Como diz a matéria, downloads para uso pessoal ficam em uma área cinza. As notas do Instituto de Pesquisa em Direito & Tecnologia do Recife e do Partido Pirata deixam claro que os argumentos jurídicos e técnicos em que se baseia a notificação são bastante frágeis.

Na verdade, o debate em torno do direito autoral na internet tem sido crítico desde a invenção dessa tecnologia. Além disso, novos desafios têm surgido sem que antigos tenham sido equacionados, como comentamos aqui no relato sobre a mesa Direito Autoral e Internet no Século XXI, no 10º Fórum da Internet no Brasil. A Lei de Direito Autoral brasileira é de 1998 e não contempla a complexidade do digital. Nos anos 2000, houve uma rica discussão em torno da Revisão da Lei de Direito Autoral para adequá-la às novas tecnologias, num processo democrático de consulta pública com ampla participação dos diversos setores da sociedade. Lamentavelmente, esse processo foi engavetado ainda no governo Dilma, que não soube compreender a importância do debate. Hoje existe uma nova revisão da lei em curso, em um processo muito mais fechado, como era de se esperar no atual governo.

Enfim, estamos bastante atrasados nessa discussão, sem uma legislação clara que estabeleça um equilíbrio entre o direito dos autores a uma justa remuneração e o direito de acesso à cultura e ao conhecimento previsto no Marco Civil da Internet. No meio desses dois direitos legítimos, temos a indústria cultural que chamamos de rentista por extrapolar em muito um retorno adequado pelo seu investimento, oferecer em geral migalhas para os atores da cadeia produtiva que exploram, ao mesmo tempo em que, com recursos e um lobby poderoso, se utilizam de recursos tecnológicos e jurídicos para restringir a circulação das obras a fim de garantir sempre lucros crescentes. Apesar de alegarem prejuízo, não conseguem demonstrar de fato suas perdas. Isso sem citar  as pesquisas que mostram que a ampla circulação de filmes, músicas e livros, na verdade, ajudam na sua divulgação e, consequentemente, nas suas vendas também.

Para completar, temos ainda o fato de que quem recebeu a notificação muitas vezes nem foi a pessoa que baixou o filme. Basta ser o responsável por determinado IP. Sem falar que o valor de 3 mil reais é totalmente desproporcional para o download de um filme. Em sua defesa, os advogados envolvidos no litígio argumentam que a cobrança teria, por um lado, o objetivo de ressarcir a indústria do suposto prejuízo pela prática disseminada de download de obras protegidas, e, por outro, uma função pedagógica, isto é, criar um clima de pavor entre os usuários de torrent para inibir a prática.

O Partido Pirata do Brasil chama a atenção exatamente para esse último ponto: talvez a notificação tenha o objetivo de causar um terror psicológico pela ameaça de ação judicial e, assim, forçar o usuário a fechar logo um acordo financeiro. No entanto, dificilmente uma ação nessas bases resultaria em vitória pela sua fragilidade jurídica. Eles acreditam que se trata, na verdade, dos chamados “Copyright Trolls, pessoas ou organizações que fazem ameaças de processo judicial para obter remuneração a partir de questões relativas à proteção de direitos autorais. Quem se assusta e tenta logo fechar um acordo, sai no prejuízo...

Por isso, a recomendação para quem receber a notificação é não entrar em contato com os telefones ou endereços eletrônicos indicados nelas. Muito menos aceitar o pagamento da multa. A melhor medida é procurar um advogado de sua confiança para orientá-lo.

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