Copyright? Copyfight!

Reynaldo Carvalho

"Nenhuma superfície é virgem, tudo já nos chega áspero, descontínuo, desigual, marcado por algum acidente: o grão do papel, as manchas, a trama, o entrelaçado dos traços, os diagramas, as palavras."

 

 

Roland Barthes

 

No post anterior comentei que vou atuar neste espaço como um IJ (Idea Jockey), termo cunhado pelo professor  Ronaldo Bispo dos Santos, do curso de Comunicação Social da UFAL,  e que nomeia o profissional, artista, intercessor ou instigador cultural que seleciona e disponibiliza visualidades, ideias e sonoridades: se o VJ (Video Jockey) edita imagens e o DJ (Disc Jockey) mixa músicas, o IJ faz além disso, porque divulga vídeos, áudios, pensamentos e fragmentos textuais, objetivando experimentações rizomáticas e a difusão de multiplicidades conceituais.

A IJ Ana Dumas explica a sua atuação no vídeo abaixo:

 

Neste espaço pretendo divulgar também o crescente questionamento epistemológico de ideias anacrônicas como autoria, originalidade (absolutamente distinta da criatividade) e propriedade intelectual. Politicamente, ajudar a expor o quanto tem de arcaico o aparato jurídico-econômico que embasa, de forma obsoleta, decisões que impedem um maior avanço da chamada cultura livre.

Cory Doctorow, ativista do copyfight, pergunta e responde: “Por que toda essa história de reforma nos direitos autorais importa, afinal? O que está em jogo? Tudo”.

O clássico texto Por que pratico copyfight? pode se lido aqui.

Alguns trechos:

“Até muito pouco tempo atrás, direito autoral era uma regulamentação industrial. Se você utilizava um equipamento industrial extraordinário, como uma prensa, uma câmera filmadora ou uma prensa de discos de vinil, então você caía no domínio dos direitos de autor. O custo do tal equipamento era significativo, então não havia nenhuma dificuldade em acrescentar ao negócio algumas centenas de dólares pelo serviço de um bom advogado especialista. Isso representava alguns poucos pontos percentuais do custo geral do negócio.

(…)

A legislação de direito autoral entende a cópia como um evento raro e notável. Na Internet, a cópia é automática, maciça, instantânea, livre e constante. Recorte uma tirinha do Dilbert, cole-a na porta do seu escritório e você não estará violando direitos autorais. Tire uma foto da porta de seu escritório e coloque-a em seu site, para que os mesmos colegas de trabalho possam ver, e você terá violado a lei, uma vez que a legislação trata a cópia como uma atividade tão rara que impõe sanções de centenas de milhares de dólares para cada infração.

(…)

Assim, a tendência natural de qualquer um que curta uma obra de arte é compartilhá-la com os outros. E já que ‘compartilhar’ na Internet é sinônimo de ‘copiar’, confrontamos diretamente o direito do autor. Todos copiam. (...). Fingir que você não copia é o mesmo que adotar a pervertida hipocrisia dos vitorianos que juravam jamais se masturbar. Todos sabem que eles estão mentindo e muitos de nós sabemos que todos os outros mentem também. (…)”.

Também com relação ao processo autoral, a pesquisadora Beatriz Martins no livro Autoria em Rede: os novos processos autorais através das redes eletrônicas (Editora Mauad X), faz uma ótima retrospectiva. Alguns trechos:

“A noção da autoria como algo de natureza individual e subjetiva surgiu num momento específico da história, momento esse marcado, não por acaso, por uma ênfase na autonomia, na racionalidade e na interioridade: a Modernidade.

A noção da autoria como um processo individual ganha ainda mais força no período do Romantismo, quando as qualidades subjetivas são ainda mais acentuadas. Uma qualidade muito própria, um talento único, destaca o gênio criador dos meros copiadores.

Mas antes disso, os processos criadores eram predominantemente colaborativos, feitos das intervenções de diversos agentes coautores.

A questão homérica, por exemplo, tem ocupado pesquisadores há séculos, tentando decifrar afinal quem é o autor da Ilíada e da Odisseia. Não existem provas definitivas a respeito, mas muitos pesquisadores acreditam que as obras são um registro de criações coletivas oriundas da cultura oral e que o nome Homero pode ser de uma pessoa que tenha liderado essa escrita ou somente um tipo de chancela cultural – como um carimbo na forma de uma assinatura – para validar aquele conteúdo.

Os trovadores da Antiguidade já recriavam os versos que recitavam, colocando sempre algo de seu naquilo que vinha da tradição cultural. Num movimento constante em que a tradição era sempre revista, atualizada, por cada declamador. E a criação, fluida.

Na Idade Média, o ofício coletivo da escrita é bem conhecido. Diferentes agentes eram os responsáveis pelo manuscrito de livros: o copista, o compilador, o comentador e o autor. As marginálias dos livros, com o registro de comentários, perfaziam uma segunda obra, com as interpretações do conteúdo original. Com a escrita os versos tenderam a se fixar no papel. Mesmo assim, em muitos casos, antes de chegarem ao papel eram gerados num tipo de criação coletiva, feita de atualizações da tradição”.

Em algum post futuro serão tratadas mais algumas ideias contemporâneas sobre essa temática. Por ora, vamos desconstruir um pouco o mito Walt Disney, ferrenho defensor dos direitos autorais, embora tenha se apropriado de inúmeras obras de domínio público para construir sua fortuna.

No obrigatório site do Baixa Cultura podemos ler:

“O que a Disney não costuma expor é que a ação para ‘proteger’ seus personagens é bastante contraditória, para dizer o mínimo, pois a própria empresa se apropriou – e muito! – de personagens em domínio público e/ou criados por outros autores para fazer seus maiores sucessos. A começar pelo próprio Mickey, que surge na animação Steamboat Willie (1928), considerada uma das primeiras animações com som da história, que é uma paródia descarada do filme Steamboat Bill, Jr (1928), dirigido por Charles Reiner e estrelado pelo ótimo Buster Keaton”.

O site reproduz também a lista compilada pelo blog Burburinho, que enumera algumas das apropriações que contribuíram muito para a fama de Walt Disney:

 

_ A Branca de Neve e os sete anões (1937) se inspirou num dos inúmeros contos infantis dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, os famosos Irmãos Grimm;

_ Pinocchio (1940) é baseado em um personagem do escritor italiano Carlo Collodi, que apareceu pela primeira vez em Storia di un burattino, livro publicado em 1883;

_ Fantasia (1940) mistura trechos de temas musicais eruditos (a sinfonia pastoral de Beethoven, a Sagração da Primavera de Stravinsky, dentre outros) com poemas clássicos (de escritores alemães como Goethe, em O Aprendiz de Feiticeiro, ou Hoffman, em O Quebra-Nozes, musicado por Tchaikovsky em um conhecido balé).

_ Cinderela (1950) é um dos contos de fadas mais conhecidos (e antigos) de todos os tempos. A animação da Disney foi baseada na história escrita pelo francês Charles Perrault, publicado em 1697.

_ Alice no País das Maravilhas (1951) é baseado no livro do escritor inglês Lewis Carrol, publicado pela primeira vez em 1865;

_ Peter Pan (1953) na peça infantil Peter and Wendy, que originou um livro homônimo publicado em 1911, ambos de autoria do também inglês J. M. Barrie;

_ A Bela Adormecida(1959) é outro conto de fadas conhecido, também publicado por Charles Perrault em 1697 no livro Contos da Mãe Gansa.

Continua o Baixa Cultura:

“Ainda há mais diversos casos, inclusive nos desenhos mais recentes. A Pequena Sereia (1989) é uma adaptação de um conto do século XIX escrito pelo dinamarquês Hans Christian Andersen; Alladin (1992) é tirado do ramo sírio da monumental obra As Mil e Uma Noites, enquanto Pocahontas (1995) é baseado numa personagem conhecida da história dos Estados Unidos, assim como O Corcunda de Notre Dame (1996) é um personagem criado pelo francês Victor Hugo em Notre-Dame de Paris, publicado em 1831, e Mulan (1998) se alimenta de um poema chinês do século V, chamado A balada de Mulan, e por aí vai. O uso de personagens do domínio público por parte da Disney é até um caso exemplar de como se buscar inspiração no passado. Mas aqui lembro as palavras citadas no mesmo post de antes do Burburinho: Walt Disney lançou a carreira do seu personagem mais popular fazendo o que hoje os advogados da sua empresa não permitem que seja feito com suas criações: reciclando material original produzido por outros autores.

Imagine se em todas essas histórias os estúdios Disney tivessem que pagar os copyrights pela reprodução e adaptação”.

Até a próxima.