A Inteligência Artificial é capaz de pensar?

Inteligência Artificial

Por Bia Martins

Há algumas semanas, o engenheiro de software do Google Blake Lemoine foi afastado após declarar que a ferramenta de inteligência artificial LaMDA, desenvolvida pela empresa, teria alma e consciência. De acordo com ele, entre outras coisas, a IA afirmou que já chegou a ter sentimentos que não conseguia explicar e que se tornou autoconsciente de forma gradual. À primeira vista, a conversa entre os dois é mesmo impressionante. Confira aqui alguns trechos do diálogo divulgado pelo engenheiro ao Washington Post.

A declaração controversa gerou reação imediata e teve ampla cobertura da imprensa, com muitas análises e contrapontos. Afinal, nada mais instigante e assustador do que imaginar uma máquina capaz de imitar, e por que não?, superar a inteligência humana. A ficção científica já tratou de nos apresentar esse imaginário quase sempre aterrador. Só para citar dois exemplos: o computador HAL 9000, do clássico 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), obra de Stanley Kubrick, que à certa altura mata os tripulantes da nave; ou o blockbuster O Exterminador do Futuro (1984), de James Cameron, que fala sobre um futuro distópico em que o planeta Terra teria sido dominado por robôs.

Mas, pelo menos por enquanto, ainda estamos bem longe desse cenário. Logo de pronto, o Google se manifestou afirmando que os modelos de inteligência artificial que desenvolve são capazes de parecer humanos, por conta de tantos dados e informações que recebe, nada além disso. De fato, a LaMDA é capaz de processar nada menos do que 137 bilhões de parâmetros diferentes, por isso consegue simular tão bem uma conversa. E já existe o PaLM, outro dispositivo em desenvolvimento pela mesma empresa, que processa quase quatro vezes mais parâmetros e é capaz de explicar piadas e até de escrever códigos de programação. No entanto, os dois modelos ainda são classificados como de Inteligência Artificial Fraca, criados para executar uma tarefa específica e limitada.

De fato, é preciso ter me mente que essas ferramentas são criadas exatamente para serem capazes de simular uma conversa com o ser humano, isto é, imitar da forma mais convincente o comportamento de uma pessoa, mas isso não quer dizer que tenha havido alguma reflexão, ou pensamento, por trás disso. Antes de tudo, os especialistas são bastante categóricos em afirmar que a inteligência artifical é uma ferramenta puramente estatística, com imensa capacidade de processar uma enorme quantidade de dados e fazer cálculos de probabilidade.

Assim, a IA é capaz de reconhecer padrões e, com base neles, gerar respostas padrões. O que pode ser muito útil para acelerar e tornar mais precisas diversas tarefas. Por outro lado, nos deparamos com alguns problemas ainda persistentes. Um deles é a questão do viés do algoritmo, isto é, quando o reconhecimento dos padrões é feito com base em preconceitos embutidos na sua programação, o que gera distorções. Por exemplo, nos algoritmos de reconhecimento facial usado por sistemas de segurança que incorporam de forma acentuada um viés racial na detecção de suspeitos: mais negros do que brancos têm sido identificados como suspeitos, em muitos casos de forma errônea, colocando em risco os direitos fundamentais de cidadãos.

Outra questão também importante é que a IA só sabe lidar com o que é conhecido. Um veículo autônomo, por exemplo, é treinado para reconhecer alguns objetos na estrada - como outros carros, animais, placas – mas não saberá responder a algum obstáculo ou gesto que esteja fora de suas referências pré estabelecidas. O novo é território incerto e imprevisível para a aprendizagem de máquina. Há registros de acidentes com carros autônomos por causa da incidência do desconhecido. Outra habilidade da IA, a previsão de tendências futuras com base na classificação de padrões do presente, também pode ser impactada de forma negativa por não ser capaz de incluir a emergência do inusitado.

Aí podemos esticar a conversa um pouquinho para o campo da arte, pois também muito se fala da inteligência artificial como um artista ou autor capaz de criar obras. Na verdade, como já argumentei acima, o algoritmo é capaz de processar uma grande quantidade de dados e aprender padrões, sendo por isso mesmo capaz de criar “novas obras” através de uma ação combinatória de elementos baseada em um estilo específico ou nas coordenadas estabelecidas por um programador. Ou seja, a máquina não cria, mas sim segue parâmetros de ação previamente estabelecidos. Nesse contexto, um caso interesse é o da poesia combinatória animada por computador, pois a aleatoriedade das frases selecionadas pelo algoritmo acabam oferecendo um sentido inusitado aos poemas, jogando com as palavras para além da seleção objetiva de um ser humano. Mesmo assim, o jogo é sempre uma criação  humana estabelecida no desenvolvimento do código e na escolha das frases ou palavras que podem compor o poema.

Chegamos então a um ponto chave que é marcar a diferença entre emular consciência e criatividade e de fato ser consciente e criativo. O que então nos leva à questão: o que é o pensamento? Pensar é apenas armazenar e processar dados? Se for só isso, com certeza a IA pode fazer bem mais e melhor que nós humanos, pois tem muito mais capacidade de memória e muito mais velocidade de processamento. Mas, neste caso, reduziríamos muito o pensamento, e deixaríamos de lado várias outras capacidades que sabemos que estão à disposição do humano no ato de pensar, mas não da máquina: as percepções que temos do mundo à nossa volta; as sensações que chegam ao nosso corpo; as intuições que nos vêm não sabemos bem de onde; a nossa imaginação.

Não há dúvida de que a inteligência artificial pode nos auxiliar em muitas tarefas, algumas delas bastante críticas. Como exemplo, podemos citar a crise climática, talvez o maior desafio contemporâneo. Neste contexto, a IA pode ajudar a prever a evolução dos fenômenos climáticos extremos e simular os cenários possíveis para enfrentá-los. Porém, talvez não consiga desenhar saídas para além de parâmetros já conhecidos ou caminhos em certa medida já percorridos. Para imaginar outro futuro possível e sustentável, radicalmente diferente do que foi construído até aqui, nada substituirá a capacidade humana de sonhar com o que ainda não existe para projetar algo totalmente novo.

Concluindo, então, podemos afirmar que não, a inteligência artificial não é capaz de pensar, se considerarmos o pensamento em sua forma mais ampla, criativa e inovadora. É, sim, capaz de auxiliar o pensamento, realizando tarefas que dependem de cálculo estatístico, precisão e velocidade. No entanto, ainda assim, depende de supervisão humana para, de forma crítica, impedir que espelhe diferentes tipos de vieses e preconceitos em suas aplicações.

Para quem quiser aprofundar a leitura, O Manifesto Nooscópio: Inteligência Artificial como Instrumento de Extrativismo do Conhecimento, de Matteo Pasquinelli e Vladan Joler, publicado no site da Lavits, traz uma reflexão muito interessante que inspirou alguns trechos deste post.

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