De volta ao Copyfight!

Por Bia Martins e Thiago Novaes

 “Hoje, também pelo esgotamento das combinações dos sete graus da escala diatônica [mesmo acrescentando alterações e tons vizinhos] esta prática desencadeia, sobre o universo da música tradicional, uma estética do plágio, uma estética do arrastão. Podemos concluir portanto, que terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a era do plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada.” (Tom Zé)

Tom Zé avisa que acabou a era autoral, o que vale é a plagicombinação. Afinal, o que é uma obra senão, como já sinalizava Roland Barthes, o resultado da inspiração oriunda dos mil focos da cultura? Então como, ainda hoje, quando estamos conectados a um imenso hipertexto multimídia, é possível defender direitos autorais exclusivos e excludentes? Às vezes esta questão pode parecer etérea, mas não: ela diz respeito a como queremos construir nosso futuro. Ou em outras palavras, a quem devem pertencer o conhecimento e a cultura em nossas sociedades informatizadas.

O fato é que estamos passando agora por um momento de grande recrudescimento da defesa da figura do direito autoral. Este debate já esteve mais em pauta no início dos anos 2000, na luta da Recording Industry Association of America (RIAA) contra o compartilhamento de arquivos pelas redes P2P. As corporações de mídia lutaram com todas as suas armas, jurídicas e tecnológicas, com algumas vitórias, mas sem conseguir deter de todo as livres trocas pelas redes. As coisas só começaram a tomar outro rumo com a chegada dos serviços de streaming pois, ao que parece, para a maioria das pessoas ficou mais à mão assinar serviços como Spotify e Netflix para ouvir músicas e ver séries e filmes, do que se embrenhar pelo mundo nem sempre muito intuitivo do BitTorrent. Assim, as corporações conseguiram, como se diz, criar um novo modelo de negócio, garantindo seus lucros crescentes. E sobrou, na margem desse novo sistema, um nicho pequeno, mas ativo, de pessoas que por diversos motivos, especialmente financeiros, mantiveram a prática de partilhar arquivos pelas redes, aparentemente sem incomodar tanto os grandes players do mercado.

Mas o que parecia uma trégua, na verdade era apenas um recuo tático das corporações que vieram com um armamento mais pesado: através de um lobby poderoso conseguiram influenciar na definição de legislações estratégicas, como a Diretiva sobre Direito Autoral do Conselho da União Europeia, que prevê a implantação de filtros automatizados pelas grandes plataformas (Youtube, Instagram, Facebook, Twitter etc) para detecção de conteúdo protegido. O problema é que esta diretiva terá vigência no mundo todo, já que as plataformas têm alcance internacional. E o agravante é que esses recursos automatizados têm dificuldade em distinguir os usos não permitidos dos permitidos, como o direito de fazer paródia ou de usar pequenos trechos de obras. Aqui no Brasil, essa regulação já chega infringindo o Marco Civil da Internet que garante o direito à liberdade de expressão e o acesso à cultura e ao conhecimento. Este foi o tema do workshop “O Direito Autoral e a Internet no Século XXI” que realizamos no Fórum da Internet no Brasil no ano passado.

Então, daqui pra frente será comum vermos cenas como esta:  uma pessoa é notificada que sua singela publicação no Instagram foi bloqueada porque tinha um trecho de uma música protegida por direito autoral. Mas era só um trecho, na verdade a letra da música tinha tudo a ver com a imagem… Não importa, a música pertence a uma corporação de mídia e você não tem permissão de utilizá-la.

E a tendência é piorar: aplicativos como Telegram têm sido acusados de não se “esforçarem o suficiente para combater a pirataria”, e as grandes detentoras de direitos mundiais (RIAA e MPAA) hoje são amparadas por grupos de trabalho nacionais empenhados em judicializar usos, muitas vezes em detrimento do acesso à cultura e conhecimento previstos como equilíbrio necessário face ao direito do autor.

No Brasil, em julho último, fomos surpreendidos com outra violação aos direitos previstos pelo Marco Civil da Internet: o Ministério da Justiça bloqueou o acesso dos brasileiros a centenas de sites, incluindo o Pirate Bay, afrontando o princípio de neutralidade da rede, previsto no MCI, e ignorando que parte do conteúdo disponibilizado pelo site é relativo a produções com licenças Creative Commons.

No livro Copyfight, de 2012, grande parte dos dilemas hoje enfrentados em torno do avanço dos algoritmos já podia ser previsto como demanda crescente de meios técnicos de controle para atender ao processo de judicialização levado a cabo pelas empresas detentoras de direitos autorais. O argumento deste breve texto se soma às críticas apontando um recrudescimento dos mecanismos de vigilância e ampliação do modelo liberal-individual de autoria e produção cultural, posto em funcionamento em paralelo aos modelos alternativos e eficazes de compartilhamento de conhecimento e bens culturais. Iniciativas como Sci-hub vêm sendo reconhecidas como ampliadoras de citações e o movimento de Ciência Aberta, conforme já registramos aqui, tem sido promovido, inclusive, como política de Estado.

Diante desse quadro, o desafio agora é fortalecer o outro lado da disputa. Pois embora estejamos assistindo ao avanço implacável das estratégias de defesa da propriedade intelectual sobre os bens intelectuais, a resistência tem sido ainda insuficiente. Nada que se compare às mobilizações contra o projeto SOPA e PIPA no início dos anos 2010, por exemplo. Ao contrário, temos visto surgirem iniciativas que tentam normalizar o cercamento, valorizando pequenas brechas para uso e compartilhamento permitidas pela legislação vigente, sem questionamentos. Com este post, queremos apontar mais uma vez para a urgência deste debate, nos aliando àqueles que, em diferentes trincheiras (Cultura Livre, Educação Aberta, Ciência Aberta etc), defendem o conhecimento e a cultura como bens comuns.

Referências:

Novaes, T. O. S. (2017). Artitudes na Internet: gratuidade, anonimato e guerra ontológica no compartilhamento de bens culturais entre redes distribuídas. Indisciplinar, 3(4), 280–301. 

Martins, B. C. (2011). Autoria, propriedade e compartilhamento de bens imateriais no capitalismo cognitivo. Liinc Em Revista, 7(2), 358-374.

Martins, B. C. (2012). Repensando a autoria na era das redes. In Tarin, B; Belisário A. (Orgs) Copyfight – Pirataria e Cultura Livre. Editora Azougue, 93-98.