Guima San - o hacker do monitoramento ambiental

Pense num projeto de Ciência Cidadã utilizando hardware aberto para o monitoramento ambiental. Muito provavelmente encontrará o nome de Guima San entre seus desenvolvedores. Atuando em diversas frentes, do pioneiro Metareciclagem a instalações artísticas, ele tem se dedicado nos últimos anos a projetos como InfoAmazonia, HiperGuardiões e Coletivo Urbano. Nesta entrevista ao Em Rede, Guima conta um pouco de sua trajetória e detalha essas iniciativas que, segundo ele, têm servido de contraponto às análises oficiais de órgãos governamentais.   

Por Bia Martins

- Em sua trajetória, você já atuou em diferentes projetos, desde o Metareciclagem, passando por instalações artísticas e chegando ao monitoramento cidadão do meio ambiente. Existe um ponto em comum entre essas iniciativas?

Existe, sim, um fio condutor em que me mantenho: a pedagogia da autonomia. Em qualquer dos movimentos que me aproximo, procuro me adaptar e criar com organizações e pessoas que respeitem esse conceito. É como uma doutrina propriamente, baseada no livro homônimo de Paulo Freire. Acredito em sua filosofia sobre a utopia praticável, não só a ser conquistada, mas sim vivenciada. Metareciclagem foi minha escola. E junto ao início de hacklabs e instalações, pode-se dizer que fiz meu TCC. Fiquei satisfeito com isso e procurei continuar estudando pra um mestrado autodidata, em monitoramento ambiental com IoT (Internet das Coisas), que venho pesquisando em comunidades desde 2012.

Ainda não consegui consolidar nada nas vias acadêmicas comuns, mas continuo observando em paralelo. Aliás, considero que comecei a pesquisar por conta própria desde que larguei a Física nesse mesmo ano. Trabalhei em instalações, em grande maioria acolhidas pelos SESCs, e eventos de artistas autônomos, todos com pedagogia livre e geralmente documentados com viés acadêmico, por um desejo de me manter próximo de uma pesquisa. O ativismo com o HiperGuardiões (2015), por exemplo, nasceu posteriormente, mas é uma boa concretização em coletivo de práticas científicas que abarcam as artísticas. O contrário ainda possui muito preconceito, quando vistas pelo público científico. 

- Você foi desenvolvedor do projeto Rede InfoAmazonia, que monitora a qualidade da água no oeste do Pará, através de sensores baseados em tecnologias abertas, e envia os dados sobre contaminação por SMS para a população. Em que pé está o projeto atualmente e quais os desafios para sua ampliação para toda a região amazônica? 

O RIA foi um grande parceiro onde participei a convite do vjPixel e Gustavo Faleiros, quando ganharam o prếmio do Google Desafio de Impacto Social em 2014,  para fazer o desenvolvimento do hardware junto com uma startup da USP, DEV Tecnologia. 

Durante um ano desenvolvemos um shield para Arduino Mega, o qual batizei de Mãe d'Água, pois era o nome do projeto de monitoramento ambiental que já desenvolvia desde 2012 com Maira Begali, ecologista e engenheira ambiental. Nessa versão do Rede InfoAmazonia o hardware ganhou o apelido de Chico Mendes, pois foi desenvolvido para medir os parâmetros que eram necessários no ambiente ribeirinho do Rio Tapajós, onde seriam instalados. São eles: pH, ORP (Oxidation Reduction Potential), EC (Condutividade Elétrica), temperatura da água, pressão e temperatura atmosférica. O shield também possuía o desafio de ser produzido com a verba que tinha para o hardware e garantir a sobrevivência do projeto durante um ano ao menos. Fizemos o shield nesse tempo todo. Apanhamos mais, pois tivemos que inventar o shield ao invés de simplesmente encaixar um módulo pronto no outro. Mas ficou uma placa realmente incrível, com a qualidade e a precisão que precisávamos para indicar um alerta de atenção, apesar de não conseguirmos colocar os sensores de detecção de coliformes fecais junto. Fizemos uma incubadora microcontrolada para os kits químicos convencionais. O parâmetro de ORP é atípico e foi resultado da pesquisa que desenvolvi, documentada ainda em relatórios do projeto. O hardware precisava ser homologado com bons testes científicos comparativos. 

O Rede InfoAmazonia necessita de agenciamento urbano, de pessoas que escolham trabalhar com IoT em suas vidas, pois o emprego de Ciência Aberta e Jornalismo Cidadão em palestras expositivas e oficinas sobre os sensores foi parte fundamental desse processo. E, pelo que sei, ainda é urgente pra que continue efetivo. Não faço mais parte do projeto. Lembro que fizemos uma visita de articulação local, logo no ínicio no Rio Tapajós. Levei alguns protótipos que estava desenvolvendo no meu lab de casa, que seria um dos modelos que enviaria pra startup. Fiz as palestras expositivas e também algumas tomadas de dados independente, enquanto visitava a região na quase cheia de março, também em Alter do Chão. Essa é uma época importante, quando os poços começam a sofrer com a cheia do rio e as águas do poços se misturam com a do esgoto e, então, se houver contaminação, desencadeiam os surtos de diarréia, doenças como hepatite C etc.

Inicialmente, pensávamos que teríamos que monitorar as casas diretamente. Mas, desde Santarém até a FLONA ou até os Ribeirinhos na RESEX, existe algum sistema coletivo de abastecimento. Conseguimos, então, usar o sensor nas caixas d'água coletivas e, dessa forma, com 25 sensores cobrimos um grande número de pessoas. Agora para verificar se o poço está mandando água limpa e alertar no WhatsApp e SMS, nossos bons parceiros lá foram a ONG Saúde e Alegria e a Universidade Federal do Pará (UFPA).

- Outro projeto que você está envolvido é o HiperGuardiões, que articula o monitoramento com tecnologias livres ao conhecimento ecológico da população local. Pode explicar como isso funciona?

Depois que saí do InfoAmazonia, não tive oportunidade de ficar com o Mãe D'Água oficial, mas fiz vários protótipos. Então, pude participar junto com a Maira Begalli do LABICBr 2015. Levei os meus protótipos nos útimos dias, fizemos um workshop expositivo sobre a tecnologia de vigilância do meio ambiente. O nome HiperGuardiões foi a Maira que escolheu. Ficou engraçado e forte, então adotamos. O coletivo começou nessa iniciativa, com o desejo de continuar mesmo remotamente: Edgar no México; Luiz em Sanca; Thiago está junto na GypsyLab eventualmente. Então, o coletivo se organiza por tecnologias remotas. Isso é bem difícil, e somos bem engajados nesse aspecto, pra pessoas que nem estão ainda recebendo efetivamente por isso. Fazemos algumas hackeagens, como levar o projeto pra ser abarcado por outros. Geralmente, assim, pegamos as migalhas e construimos nossos drones/rovs guardiões em forma de guerrilha. 

- Os dois projetos anteriores são mais voltados a regiões rurais ou ribeirinhas. Existe algum projeto nessa linha para grandes cidades? Se sim, pode dar exemplos?

Soube recentemente que o Código Urbano parou de atuar. Foi um projeto do qual participei também com os sensores de qualidade do ar, e foi uma iniciativa incrível de Jornalismo Cidadão. Eu buscava fazer um pouco de Ciência Cidadã nesse tempo com eles. Consegui produzir uma série de pesquisas e documentações sobre o Dustduino. Comecei também uns encontros independentes no Garoa Hacker Club, chamei de HAckeAr, voltado pra cidade, mas usando apenas arduinos baratos e procurando colocar dispositivos de alimentação solar pra ficar na cidade. 

Nessa época uma alegria muito grande tomou conta de mim, pois descobri que seria pai. Dei uma pausa em tudo que estava fazendo, a princípio, sem pensar duas vezes pra reajustar o ritmo. Agora estamos promovendo mais o HiperGuardiões com a GypsyLab8, promovendo oficinas de Ciência Cidadã e IoT Ambiental.

- Na sua avaliação, os dados obtidos através desses equipamentos de hardware aberto são contraponto ou complemento às análises dos órgãos governamentais?

Em grande maioria, ao menos nos casos em que me deparei, são contrapontos. Isto explica um pouco da preocupação de algumas ongs e ativistas sobre questões ambientais.

Como no caso de uma cidade em que estava dando palestra e busquei um relatório público da última verificação que aprovaria a qualidade da água da região. Soube, então, que apenas a cada seis meses era feita a verificação, em um ponto da fonte de abastecimento, sobre uma condição específica do dia e dos ciclos da água. Um técnico escrevia em um papel os números e "cores" de seus dispositivos sensores. Algumas amostras eram levadas para testes in vitro no laboratório, como a controversa medida de Oxigênio Dissolvida. O rigor metodológico de captura e transporte, para que não destruam a saúde real da amostra, não era adequado. Tinha uma pequena rasura no nível de pH e uma justificatíva. Mesmo assim, o relatório foi aprovado. 

- Como pesquisador independente, que trabalha com desenvolvimento de software e hardware livres, qual sua relação com instituições tradicionais de pesquisa? O que você diria que prevalece: o conflito de visões ou a colaboração entre diferentes abordagens?

As cátedras ainda existem e também quem as mantém. Só variam os métodos e níveis dessas realidades de poder. Infelizmente o conflito e a disputa prevalecem. Se não houvesse tantos conflitos internos, já se tornaria menos esquizofrênica. Não seria mal nenhum se a instituição não condenasse as transdisciplinaridades. Há muitos conflitos entre professores com a própria licenciatura, e ainda existem conflitos e disputas sobre a própria pedagogia.

Alguns ostentam que o saber é pra quem penou para adquiri-lo, daí uma deturpação e dissimulação danosa, que faz mal a muitos. Ouvimos escândalos terríveis no ambiente de trabalho acadêmico coletivo, pois já não são mais como os filósofos naturistas que criaram a teoria científica. São muitos emprendedores, preocupados com a próxima patente. Eu mesmo vivenciei cenários inóspitos de convivência em sala de aula e laboratórios.

Digo que as cátedras existem, pois o status de Doutor fornece a muitos pesquisadores, por meio da arquitetura da exclusão desde o ingresso até as graduações, um terreno amplo de emprendedorismo e inovação, nos quais podem concorrer com bem menos pessoas, mas só se for mais díficil o acesso. Já existem algumas gerações sendo mimadas por essa relação dentro das instituições. 

As instituições devem continuar existindo, certamente, mas não devem ser monopólio de produção de ciência, ou seja lá o que produzam. Já descobriram como lucrar com BigData desde antes desse termo ser criado na temporada do "Salame Science". A pedagogia da opressão, que ironia, precisa ser enxergada pra ser claramente combatida.