Loreto Bravo: Espalhando tecno-sementes para a comunicação comunitária autônoma

Loreto Bravo

Ciberfeminista e ativista de mídias livres, Loreto Bravo tem se dedicado à comunicação popular, especialmente à tecnologia de rádio FM, como meio de fortalecer a luta pelos direitos humanos. Nesta entrevista ao Em Rede, ela conta como o México se tornou referência mundial em comunicação comunitária e fala da importância das estratégias de autodefesa digital para permitir a organização popular e proteger os que lutam contra a opressão. Destaca a necessidade de se superar as barreiras de gênero na apropriação tecnológica e propõe ainda uma agenda comum para a comunicação comunitária e livre na América Latina e no Caribe a partir de uma perspectiva crítica.

Por Bia Martins e Thiago Novaes

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-  Como se deu sua aproximação e aprendizado no uso de tecnologias?

Meu processo pessoal de aproximação e aprendizagem com o uso de tecnologias se deu no calor da minha participação nos movimentos sociais, principalmente no México.

Minha primeira abordagem sobre o tema das tecnologias foi na esteira de um projeto de comunicação popular e arte comunitária no ano de 2000, logo depois que a polícia militarizada entrava na Universidade Nacional Autônoma do México, para acabar violentamente com uma greve alunos que durava nove meses. Foi nesse momento que me envolvi pela minha formação antropológica com a comunicação popular que em seguida, no ano de 2004, me levaria a me envolver ativamente no movimento de mídia livre no México. Assim eu conheci o rádio e comecei a ser mais ativa nos meios digitais.

Desde muito jovem eu tenho militado no movimento feminista e, quando eu comecei me relacionar com mídias livres, percebi que havia muito poucas mulheres com conhecimento técnico em tecnologias de comunicação como o rádio, e foi assim que me senti motivada a aprender a construir transmissores e antenas de FM para rádios de baixa potência, compreendendo a importância de promover infraestruturas autônomas. Então, ao longo dos anos, venho abordando o tema do desenvolvimento de software, administração de sistemas e autodefesa digital relacionada aos direitos humanos e às questões dos povos.

- Que diferenças existem na apropriação de tecnologias por homens e mulheres, e qual o caminho para superá-las? 

A principal diferença entre a apropriação de tecnologias por homens e por mulheres é uma ideia socialmente construída, que existe na atualidade, de que a tecnologia pertence ao âmbito masculino. A partir dessa ideia se vão construindo vários mitos e estereótipos.

Há muitos caminhos para superar essas lacunas de gênero, por exemplo, desmistificar tecnologias, descolonizar as relações de poder que existem em torno das tecnologias. Criar espaços entre mulheres para que as mulheres possamos aprender mais e nos apropriarmos das tecnologias através de outras formas menos patriarcais. Aproximar-se do movimento de software livre em nossas localidades e imprimir uma perspectiva feminista de apropriação tecnológica. Ter um olhar crítico sobre o uso que fazemos hoje de tecnologias em nossa vida cotidiana.

- O México é uma referência em comunicação comunitária, desde rádios comunitárias até redes comunitárias de telefone celular. Você poderia contar um pouco dessa experiência?

No México, existem mais de 50 mil comunidades que não têm conectividade de nenhum tipo: não há telefones, não há Internet, e as rádios e TVs que assistem e ouvem apenas transmitem apenas conteúdo para pessoas das grandes cidades, os canais de comunicação estão em mal estado, no entanto, muitas dessas comunidades estão organizadas por um sistema de governo local chamado "Usos y Costumbres", isto é, exercem um nível de autonomia local. Este é o contexto que faz do México um território fértil para as “tecno-sementes”, como os rádios comunitárias e a telefonia celular comunitária. São principalmente as comunidades de povos originários no sudeste do México que têm uma história de autonomia e aqueles que desenvolveram formas de adaptação ao contexto neoliberal e capitalista, mas a partir de uma visão comunitária.

Foi durante as décadas de 70 e 80, quando muitas comunidades começaram a criar empresas comunais para tirar proveito dos recursos florestais e dos aqüíferos, que essa experiência mais tarde lhes permitiu desenvolver as empresas comunais de comunicação como atualmente possuem. São as comunidades de povos originários que estão dando exemplo da apropriação tecnológica a partir de uma visão descolonial, onde o objetivo principal dessas empresas não é o lucro, mas o exercício do direito à comunicação e autonomia. Outro elemento muito importante para entender por que o México é o berço desses projetos de comunicação comunitária é entender as conseqüências de que uma grande porcentagem da terra continua sendo de propriedade comum, ou seja, onde a propriedade privada é proibida e as próprias comunidades são as que decidiem sobre os recursos naturais.

Para entender melhor este contexto recomendo ler o meu artigo "Una semilla brota cuando se siembra en tierra fértil".

Propriedade Comum no México

No México, uma grande porcentagem da terra continua sendo de propriedade comum

- Qual o papel das tecnologias de comunicação para o fortalecimento de comunidades que não possuem acesso aos serviços comerciais como Internet e celulares?

O papel principal das tecnologias de comunicação nas comunidades quem não têm acesso à Internet ou à telefonia é fortalecer seus processos internos e locais de autonomia. São comunidades produtoras de milho, feijão, cana-de-açúcar, são comunidades com uma agricultura de subsistência onde as tecnologias de comunicação têm o papel de fortalecer a economia local. São comunidades onde a economia faz parte da cultura, do atual modo de vida. Nestas comunidades, a rádio comunitária é muito mais do que uma tecnologia, é um espaço onde se reproduzem relações sociais e, portanto, onde se faz um questionamento crítico das mesmas.

- Uma questão importante na atualidade é a autodefesa digital. Como vocês da Human Rights Defenders (HRDs) tem trabalhado esse tema?

Em um México, onde mais de 35 mil pessoas desapareceram nos últimos 10 anos e foram assassinadas mais de 100 mil pessoas como resultado de uma guerra não declarada entre os grupos de poder que possuem o controle econômico, das armas, drogas, tráfico de pessoas etc., qualquer um pode se transformar da noite para o dia em defensor dos direitos humanos pelo simples fato de reivindicar justiça. Essas vozes não têm lugar nos meios de comunicação hegemônicos que estão a serviço de grupos de poder, portanto, encontraram nos meios de comunicação digitais um canal para amplificar suas vozes, para denunciar, articularem-se e se organizarem.

No entanto, essas tecnologias também aumentam a vulnerabilidade dessas pessoas ao expor suas comunicações, sua localização, suas redes e informação pessoal. Por essa razão que a autodefesa digital e uma pedagogia não acadêmica e crítica sobre apropriação tecnológica desempenham um papel fundamental para fortalecer o papel das pessoas defensoras dos direitos humanos e dos povos no México. Para conseguir criar esses mecanismos de autodefesa digital foi necessário investir em muito trabalho de sensibilização, para entender primeiro como essas tecnologias funcionam e situar essas questões de vigilância e mineração de dados como questões fundamentais da agenda política e social do país.

Então tem surgido a necessidade de criar espaços e condições para poder falar sobre essas questões e nos capacitarmos de maneira coletiva, colaborativa, sem hierarquias, sem especialistas, mas a partir de uma ética hacker e feminista.

- É possível pensar em uma pauta comum para a comunicação comunitária na América Latina? Se sim, o que tem sido feito nesse sentido?

Eu acredito que sim, que é possível pensar em uma agenda comum para a comunicação comunitária e livre na América Latina e no Caribe.

Na minha opinião, o ponto de partida dessa agenda é a descolonização de comunicação, isto é, a liberação de nossos meios de comunicação e o uso da tecnologia a partir de uma perspectiva crítica. Para conseguir isso, precisamos pensar sobre as diferentes camadas que fazem possível a existência de nossos meios de comunicação e como podemos libertá-los da lógica patriarcal de consumo e controle.

Camada 1: a infraestrutura
Nesta camada, encontramos o espectro de rádio, as máquinas, o cabos que tornam a internet possível a internet. Temos que pensar em como fortalecer infra-estruturas autônomas.

Camada # 2: Os programas ou softwares com os quais trabalhamos em nossos meios e toda a questão da privacidade e segurança que tanto nos preocupa hoje em dia.

Camada # 3: O conteúdo
A linguagem que usamos, o tipo de jornalismo que fazemos, como lidamos com os dados e as licenças com as quais divulgamos nossos conteúdos.

Camada # 4: Relações sociais
A dinâmica do poder que reproduzimos no interior de nossos meios, a maneira como nos relacionamos com nossa audiência, nossa comunidade.

Pensando nessas camadas, podemos propor em conjunto uma agenda de trabalho que fortaleça e articule nossas lutas locais.

Para aprofundar nesta proposta: https://liberaturadio.org/comunicacion-libre/

Links de interesse:

https://www.digitaldefenders.org/
Digital Defenders Partnership
Hivos

https://palabraradio.org
"El aire es libre y la palabra es nuestra"

Red de Radios Comunitarias y Software Libre
https://liberaturadio.org
https://gnuetertics.org
https://techiocomunitario.net

https://rhizomatica.org
Redes de Telefonía Celular Comunitaria
 

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