Leonardo Foletto: sobre Cultura Livre, Remix, ativismo digital e a criação de novas formas de (con)viver

Leonardo Foletto

Com Bia Martins e Reynaldo Carvalho

Jornalista, professor e pesquisador, Leonardo Foletto é editor do BaixaCultura, site que se tornou referência para o movimento Cultura Livre no País. Nesta entrevista ao Em Rede, ele fala, claro, sobre Cultura Livre e Remix, e também sobre as formas de resistir aos retrocessos que atualmente ameaçam a liberdade na internet e ainda sobre o novo projeto Enfrenta!, no qual está mapeando iniciativas de artivismo e cultura livre na Espanha.

- À frente do excelente site BaixaCultura, você foi um dos disseminadores do conceito da Cultura Livre no Brasil. Alguns pesquisadores, como Matteo Pasquinelli, têm questionado criticamente esse movimento, apontando seu caráter eminentemente liberal. Segundo eles, a palavra “livre”, nesse caso, teria mais a ver com a liberdade de cada um disponibilizar sua obra como quiser, dentro da concepção de livre mercado, do que com a defesa mais firme da livre e ampla circulação da cultura, numa visão mais social e includente. Qual sua posição nesse debate?

Obrigado pelo excelente!

A discussão sobre o “livre” do software livre (e da cultura livre, entendimento/conceito que se fortaleceu a partir do SL) é uma das mais realizadas e polêmicas na área. No fundo, trata-se de uma questão semântica: o que é liberdade? Ou, melhor, o que entendemos por liberdade? Na minha visão, o entendimento do “livre” no movimento do Software Livre se aproxima ao de autonomia: eu quero ter autonomia sobre o software que estou usando, quero ser livre para distribuir, remixar e inclusive vender para quem eu quiser, desde que mantenha essa mesma liberdade para outros, como na ideia original do copyleft exemplificada pela licença CC BY SA, por exemplo. A grande sacada do copyleft foi ter criado um mecanismo jurídico conceitual que, além de garantir a liberdade de modificação, cópia e distribuição para qualquer um que tenha interesse,  protege a obra ao exigir que seja compartilhado pela mesma licença. Atinge uma obra por contágio, e torna ela um produto/serviço “comum”, que pode ser usado e compartilhado por tod@s, garantindo que ele vai continuar sendo livre para os mesmos fins que usei a partir do copyleft.

Esse entendimento do copyleft permite tanto uma aproximação ao liberalismo de “cada um escolher disponibilizar sua obra como quiser”, quanto a defesa “mais firme da livre e ampla circulação da cultura”. Os dois sentidos entram na liberdade do copyleft, e talvez por isso o movimento do software livre e do copyleft tenha participantes tanto à direita quanto à esquerda no espectro político – é comum de ver, em eventos grandes como o Fórum Internacional do Software Livre (FISL) em Porto Alegre, tanto pessoas simpatizantes de um liberalismo econômico como os que defendem uma maior intervenção estatal na economia. As duas posições convivem juntas dentro da cultura livre, mas é claro que há muitos embates.

Por exemplo, muitas pessoas, que me parece que se alinham a posição do Pasquinelli, defendem o acréscimo da cláusula “não comercial” na licença original do copyleft para produtos artísticos, de forma a garantir o uso comercial somente para quem tem firmado algum compromisso com uma igualdade de direitos e circulação da cultura – como cooperativas, ONGS e outros tipos de organizações que não visam lucro. A P2P Foundation tem uma licença pra isso, a Peer Production License, que garante o reuso e a distribuição de produtos apenas para cooperativas, organizações não-profissionais e outras iniciativas que se baseiam na ideia do comum (em espanhol o termo usado é “procomún”, em inglês commons). É um tipo de licença que se organiza em torno da ideia do CopyFarLeft, uma das iniciativas que surgiram depois do copyleft para tentar resolver a questão do uso e reapropriação de produtos copyleft para fins comerciais de grandes empresas que só visam o lucro fácil, o que ocorre com certa frequência no mundo do software livre.

Já usamos no BaixaCultura a licença CC BY SA e faz alguns anos que mudamos para a Arte Libre 1.3, por acreditar que ela protege e detalha melhor o tipo de uso determinado de uma obra, baseado nos mesmos princípios do copyleft. No caso específico do BaixaCultura, não vemos a necessidade de especificar o reuso do material apenas para organizações e pessoas que não visam lucro, mas para outros projetos, conteúdos e obras talvez tenhamos que especificar; vai depender de cada caso. De qualquer forma, entendemos que embora seja importante a discussão sobre as licenças, a cultura livre não se faz só com elas, mas com a democratização radical dos meios de comunicação, com a defesa da transparência das informações governamentais e da privacidade dos nossos dados, e da colaboração em vez da competição, algo que sempre esteve alinhado com o BaixaCultura desde seu início.

- Numa linha parecida segue o debate sobre as licenças alternativas. Como avalia hoje a dualidade Copyright X Copyleft e a tentativa de síntese efetuada pelo Creative Commons?  Nesse contexto, como vê o Copyfight, que questiona em algum grau todas essas licenças e remete a um espaço de disputa para além dos licenciamentos?

Acho que a discussão da questão anterior já aborda um pouco dessa também. A ideia do “todos os direitos revertidos” do copyleft original é importante hoje para potencializar e manter a ideia de um comum forte, gerido e mantido pelas pessoas. É uma tentativa de reconstituir um regime de apropriação comum que existia nos commons ingleses, comunidades rurais onde as divisões de terra eram consensuais e se tinha a noção de onde começava uma e terminava outra, e expandi-lo aos bens intelectuais e imateriais produzidos no mundo digital de hoje. O Creative Commons, nesse sentido, vem como uma organização jurídica mais amigável e ampla do copyleft original, que se coloca como um intermediário entre o copyright – todos os direitos reservados – e o domínio público – nenhum direito reservado. Por isso, o CC se diz como “alguns direitos reservados”, onde você pode escolher quais são esses direitos.

Trata, como disse uma vez o Eduardo Viveiros de Castro (na entrevista do livro Cultura Digital.br), de “tentar criar um modo de coabitação no plano da informação que seja tolerável, e que evite o controle da informação pelas grandes companhias”. Por fazer essa interpolação, o CC acaba permitindo tando uma licença restritiva – sem comercialização pela mesma licença, sem reuso, sem usos comerciais – como a licença original do copyleft, CC BY SA, e essa liberdade de escolha do CC é muito criticada por alguns, tanto os que consideram o CC como uma “estrategema capitalista” que não define um padrão ético mínimo para adoção de suas licenças, como os anarquistas que defendem o fim da propriedade privada, qualquer que seja. Entendo os dois lados, e a princípio estou com aqueles que consideram toda e qualquer propriedade privada é um roubo, mas creio que também não adianta “tapar o sol com a peneira”: no mundo de hoje, o CC é importante como uma “porta de entrada” amigável que, pelo menos, mostra para os criadores que eles podem ter autonomia na hora de escolher os direitos de sua obra e apresenta a discussão sobre o copyright e o copyleft e a problemática de considerar alguém “dono” de certas ideias.

Nesse sentido, propostas como o copyfight e também o Kopimi são importantíssimas para ir mais além, questionar todos os mecanismos que tratam de criação e apropriação de uma determinada obra e falar de propriedade para além das licenças em si. Gosto de um texto do Felipe Fonseca, inclusive está no livro Copyfight, que se chama “Por licenças mais poéticas”, e trata de pensarmos em licenças de uma forma mais lúdica e criativa, já que mesmo as licenças que se propõem alternativas ao copyright ainda caem numa normatividade imposta pelo mercado, acreditando que a “obra” é mais importante que o processo. 

- O ato de remixar é visto por diversos estudiosos como algo inerente à produção humana em qualquer período histórico, enquanto a expressão cultura (ou era) remix é comumente associada à época digital. Contudo, esses termos têm sido cada vez menos utilizados por pesquisadores em artigos, teses, matérias jornalísticas e até no BaixaCultura. Em sua opinião qual a razão dessa redução? Remixar disseminou-se a ponto de diluir-se, ou já chegamos ao “depois do remix”, tema do famoso ensaio de Lev Manovich intitulado What Comes After Remix?

O BaixaCultura surgiu em 2008, talvez no auge da popularização da noção de cultura remix, da noção de que ”tudo é remix”, recriação, referências. De la pra cá, nas oficinas/falas/textos que produzimos, não deixamos de falar de remix porque consideramos importante que usar o termo dá ênfase ao processo, à construção criativa produzida a partir de diversas referências recriadas por alguém. Falar de “tudo é remix”, pra nós também é liberar o criador do ônus de ter que ser genial, criar algo do nada, uma imagem do século XIX que ainda permanece hoje e nos faz idolatrar e colocar num pedestal fictício certas pessoas/grupos. Para nós, criar, como falamos no texto “Revalorizar o Plágio na Criação”, está mais relacionado à forma como reorganizamos (ou “remixamos”) as referências a que temos acesso do que a uma inspiração divina que vai fazermos ser genial. Mais próxima à construção de um trabalho acadêmico, em que se cita e se mostra quem se cita para, então, dar a sua contribuição “nova”, deixando claro que ela é apenas a ponta do iceberg do processo criativo.

Agora, acho que a redução do uso da palavra remix se deve a um pouco de desgaste da própria palavra, que de muito utilizada por diferentes áreas e pessoas passou a significar tanta coisa que, então, deixou de nos dizer algo. Acho que não o ato de remixar disseminou a ponto de diluir-se, mas a palavra. Talvez seja o caso de ressignificar a própria palavra delimitando um pouco melhor o que é remix. Ou talvez não, deixemos ela ser usada e remixada pelas pessoas da forma como elas bem quiserem. Quem sabe daqui a alguns anos não se tem um segundo auge da cultura remix?

- Vivemos recentemente o auge da cultura digital no país, com projetos como os Pontos de Cultura, com a apropriação das redes digitais por comunidades diversas, e a aprovação do Marco Civil da Internet, referência internacional de regulação nessa área.  Tudo isso vem sendo desmontado ou está sob ameaça por conta do retrocesso político que atravessamos. Por onde é possível resistir ou quais seriam as principais bandeiras do ativismo digital atualmente?

Uma boa pergunta, que imagino que tod@s nós, que de alguma forma estivemos envolvido no que você chama de auge da cultura digital no país, estamos nesse momento tentando responder. Acho que estamos num momento de repensar algumas coisas e trabalhar na construção de soluções a médio e longo prazo, porque o prazo curto está imerso num retrocesso evidente, tanto em âmbito nacional quanto global, que não parece ter receitas prontas nem rápidas para ser freado. Destaco duas frentes nesse embate. A primeira é o que muita gente chama de “hackear por dentro”: é, dentro desse nosso sistema político podre que temos, nesse pior congresso da história no caso do Brasil, continuar agindo para que legislações como o Marco Civil da Internet e projeto como os Pontos de Cultura não sejam completamente destruídos.

Aqui vale o trabalho diário de organizações ativistas como o Intervozes, o IDEC, o Coding Rights, a frente Internet sob Ataque, a Eletronic Frontier Foundation e outr@s tantos que mantém um trabalho de acompanhamento das votações no Congresso Nacional que tentam mutilar o Marco Civil, acabar com a neutralidade da rede e tornar a internet uma TV a Cabo controlada e vigiada, destruindo o gigantesco potencial criativo em que ela foi desenvolvida. Acompanhar as votações, falar com os deputados, “desenhar” para eles como funciona a rede e porque ela deve ser considera um direito humano fundamental neste século XXI demanda muito tempo e esforço, ainda mais quando o “inimigo” são mega empresas de telefonia e a indústria do copyright, que tem muito mais dinheiro e compram facilmente nossos horríveis deputados e senadores. Admiro muito as pessoas que estão nesse dia, que ainda é necessário enquanto nosso sistema político for este, e tento ajudar das formas que consigo, tanto no BaixaCultura como em minha vida acadêmica - sou professor de uma disciplina de “Ciberativismo e Cultura Livre”, numa pós-graduação de cultura digital e redes sociais da Unisinos (RS), e ali sempre trago estas questões para as aulas, assim como em outros lugares onde dou aulas e/ou palestras.

De outro lado, vejo uma frente que está focada em construir alternativas para a internet e em prol dos direitos humanos na rede, sejam novas mesmo ou a potencialização das já existentes, um “hackear por fora”, digamos, mostrar que determinados caminhos são possíveis e, inclusive, economicamente viáveis. Nessa frente se encontram muitas das principais bandeiras do ativismo digital hoje: a batalha da criptografia e da proteção de nossos dados na rede, a potencialização de formas de gestão financeira como o block chain,a inserção de mulheres e LGBts no mundo machista da tecnologia digital, a luta por dados abertos e transparência em governos de todos os tipos e lugares – além, é claro, do movimento do software e da cultura livre, que tem buscado criar novas aplicações, produtos e redes que não sejam tão voltadas para a vigilância e o lucro empresarial como Facebook e Google. Há uma questão pra mim muito importante nesse momento que é a das redes livres, a construção de uma infraestrutura de rede que seja gestionada e mantida pelas comunidades e pelas pessoas, para que não fiquemos nas mãos, como hoje estamos, das grandes empresas de telefonia. Inciativas como a Coolab, uma cooperativa brasileira recém criada que busca justamente fomentar a criação e manutenção destas redes livres, são fundamentais nesse aspecto, assim como a espanhola Guifi.net, que já tem mais tempo, milhares de usuários e trabalha com a instalação e manutenção de redes meshs (redes montadas a partir de antenas e roteadores que possibilitam a comunicação em uma determinada região, em alguns casos conectadas à internet). 

Mas para responder à pergunta, acho que podemos resistir aos retrocessos em relação à internet por aí: tanto usando de nossas poucas (mas resistentes) forças para tentar garantir que a internet não seja completamente destruída por legislações feitas por políticos que nada entendem da internet , guiados por interesses comerciais e pessoais tão somente, quanto se atendo e fortalecendo a luta pela proteção dos nossos dados na rede, à criptografia, ao uso e potencialização das redes livres, ao software e o hardware livre, a maior inclusão feminina e de LGBTs no mundo “técnico” de redes e computadores, à transparência de processos e produtos digitais, na colaboração em vez de competição. Como se vê, sou otimista e (ainda) acredito no humano, rs

- Vocês do BaixaCultura estão agora envolvidos no projeto internacional Enfenta!, com a proposta de mapear e documentar o trabalho de coletivos de artivismo e cultura livre da Espanha. O que você destacaria até agora dessa experiência?

O Enfrenta! É um projeto que idealizamos no BaixaCultura faz um tempo, com a proposta de conhecer mais gente que esteja “enfrentando o status quo” a partir da cultura livre e do artivismo (termo que se aproxima também com a Guerrilha da comunicação). A primeira parte foi um intercâmbio por 2 meses na Espanha neste início de 2017 – país escolhido por ser de onde vem muitas de nossas referências na área - em parceria com o Zemos98, coletivo de Sevilla que trabalha com iniciativas (oficinas, pesquisas, festivais) de cultura livre e remix há 20 anos, e que nos recebeu lá. Foi uma viagem intensa, em que eu e Sheila Uberti (que também faz parte do fotolivre.org) passamos por 6 cidades da Espanha (Sevilla, Valencia, Barcelona, Bilbao, Donostia/San Sebastian e Madrid) entrevistando 30 pessoas/coletivos que identificamos, numa pré-seleção de mais de 50 nomes, produzimos cerca de 30h de material em vídeo e andando bastante nessas cidades para entender as especificidades dos seus espaços públicos e da relação com o artivismo e a cultura livre em cada caso.

Acho que dá pra listar dois pontos que mais me chamaram atenção da realidade espanhola. O primeiro é a explosão do cooperativismo: em alguns lugares (na Catalunha, por exemplo) está cada vez mais possível viver somente utilizando serviços/produtos de cooperativas, da energia elétrica a internet, de livraria à moradia, de alimentação à produção cultural, de bares à produção de software livre. Políticas públicas de fortalecimento das cooperativas tem sido realidade na Espanha faz algum tempo, sobrevivendo a trocas de governos ideologicamente opostos, e foram potencializadas ainda mais depois da crise de 2009 e do 15 M em 2011, o que me leva para o segundo ponto: a união que a crise espanhola proporcionou. Com pouco a perder, muitas pessoas, coletivos e serviços surgiram numa ideia de compartilhar mais do que competir, o que foi potencializado pelo 15M, que uniu diferentes “bolhas” de pessoas e foi um momento marcante de mudança de mentalidade no país inteiro (foi o que quase todos que entrevistamos nos apontaram).

Assim, a crise virou espaço de experimentação, de criação de formas diferentes de (con)viver, que por sua vez desembocaram tanto na explosão das ocupações culturais e de moradia, do fortalecimento das associações de vizinhos por meio de movimentos sociais como a Plataforma de Afetados pela Hipoteca (PAH), na popularização do feminismo e da luta por direitos iguais para tod@s, do respeito ao diferente de modo geral, quanto em iniciativas política-institucionais como o Podemos e, principalmente, os movimentos municipalistas que hoje comandam cidades como Madrid, Barcelona, Valencia e La Coruña. O desafio dessas iniciativas que chegaram ao poder está sendo bastante intenso, porque sabemos como é por em prática propostas que batem de frente com o modelo de política institucional tradicional dos governos, mas há diversos avanços, especialmente em Barcelona – um deles falamos no nosso diário de viagem: http://enfrenta.org/pt/2017/01/25/pequenos-drops-politicos-turisticos-desde-barcelona/

 A ideia de crise como espaço de união e experimentação ainda não pegou muito aqui no Brasil, e me parece que esse salto, de usar da crise como lugar de criação de novas formas de viver, é algo que poderia nos trazer algum tipo de mudança significativa. Se estamos todos fodidos, porque não unirmos todos nós, os fodidos, para propor novos caminhos?

Em relação ao Enfrenta, nesse momento, estamos nos debruçando sobre o material (vídeo e foto) para encaminhar os produtos da 2º fase do projeto - que prevê a produção de um livro, de um especial multimídia e de um mini-documentário – até o final de 2017. Nos próximos meses vamos trazer algumas novidades do projeto no site e lançar uma campanha de financiamento coletivo – mantemos vocês informados!